terça-feira, 11 de março de 2014

O tal "bom senso"

O tal "bom senso", aquele que serve para todos os argumentos, desde o holocausto até a eleição de um papa, tem nomes e formas variadas. Um destes nomes, que fica chique entoado com pompa por alguém de toga, é a "modulação de efeitos".

Acabo de ler o Informativo nº 734, do STF.

Servidores públicos do Acre, admitidos sem concurso público em 1994, ou seja, seis anos depois da Constituição, tentaram engatar num trem da alegria: tornar-se efetivos mesmo sem ter feito concurso.

Uma emenda à Constitucição do Acre, de 2005, isso mesmo dezessete anos depois da Constituição, obtida sabe-se-lá-como, garantia aos servidores o "direito" de se tornarem efetivos.

O STF entendeu, por maioria, vencidos apenas os ministros Marco Aurélio e Joaquim Barbosa, que o "bom senso" deveria imperar e permitiram, por mais doze meses, que a inconstitucionalidade continuasse em vigor. O nome disso foi "modulação de efeitos". 

O STF decidiu "modular os efeitos" da decisão. Declarou que a emenda constitucional acreana é inconstitucional, mas, como são apenas pobres servidores públicos que ingressaram sem concurso público, concederam mais doze meses de lambuja para gozarem dos direitos que adquiriram inconstitucionalissimamente!

É isso mesmo, caro leitor: o STF anulou uma lei, mas a prazo, só daqui a doze meses. Afinal, o que é um ano perto de vinte anos de ilegalidade...





sexta-feira, 7 de março de 2014

O que faz uma cidade melhor?

Desde que passei a trabalhar com este ramo do Direito Ambiental chamado de Direito Urbanístico, minha visão está
mais aguçada para alguns aspectos.

Basta caminhar por uma calçada mal construída, por uma cidade com ruas mal projetadas, que logo vêm à lembrança as normas legais sobre estes aspectos. Ah, como seriam diferentes as cidades se, simplesmente isso, se as leis fossem cumpridas!

Sim, entendeu bem o leitor. Bastaria o poder público cumprir sua missão. Nada de criar departamentos disso ou daquilo, nada de secretarias de urbanismo, nada de comissões, projetos, nem mesmo contratar empresas a peso de ouro para dizer o óbvio: cumpram as leis vigentes e tudo entrará nos eixos.

Uma das normas mais negligenciadas que conheço é o art. 13 do Decreto nº 5.296/2004, que trata da acessibilidade.

Não vi, mas posso imaginar a sua cara. Lá vem esse chato falar de acessibilidade, coisa que só interessa aos deficientes, aos cadeirantes, cegos, ou seja, pouca gente na sociedade.

Ledo engano, caríssimo amigo. Acessibilidade é algo muito mais amplo que proteção aos deficientes. Uma calçada boa de transitar, para mim, para você que não tem deficiência alguma, para quem tem deficiência grave, para a linda moça que passeia com seu cãozinho de salto alto às 7h da manhã, para a mamãe com seu bebê no carrinho, para a idosa que vai ao mercado, para todos. Se tiver interesse em se aprofundar um pouquinho, dê uma folheada na Norma Brasileira nº 9050, da ABNT. Veja as imagens e confira.

Faixa de pedestres acessível


Pois o tal art. 13 do Decreto nº 5.296/2004 determina que só se pode emitir alvará de funcionamento e habite-se caso a construção observe as normas de acessibilidade.

Isso significa, portanto, que não pode ter alvará de funcionamento, e, portanto, não pode funcionar, uma loja que não tenha as calçadas bem construídas; não pode ter habite-se uma casa que não tenha calçada; sem que as rampas sejam bem feitas, com declividade inferior a 8,33%, comércio algum pode abrir. Esta é a norma legal. Simples.

Então, já que a prefeitura vai fazer vistoria para identificar quanto de IPTU o cidadão vai pagar, que tal se aproveitasse a mesma vistoria para verificar o respeito às normas de acessibilidade?

Aliás, a prefeitura não precisaria nem mesmo se onerar despachando funcionários para vistoriar. O Decreto nº 5.296/2004 exige a observância e a certificação das normas de acessibilidade. A certificação pode ser feita por engenheiro ou arquiteto contratado pelo próprio dono do imóvel. Claro, se mentir, além do crime de falsidade ideológica, 2 a 5 anos de reclusão, está sujeito às sanções de seu conselho de classe.

Tudo isso está aí, ao alcance dos dedos do bom Administrador Público (e sim, há muitos). 

Basta dizer aos seus funcionários: cumpram a lei! Nada mais!



















sábado, 1 de fevereiro de 2014

Manchetes puramente imaginárias...



2014 - TSE decide que MP só pode investigar depois de autorizado por um juiz

2020 - TSE decide que juiz precisa de autorização do TRE para autorizar investigação de MP

2025 - TSE decide que TRE precisa de autorização do TSE para autorizar juiz a autorizar investigação do MP

2030 - TSE decide que o próprio TSE precisa de autorização do Papa Francisco para autorizar TRE a autorizar juiz a autorizar investigação do MP

2035 - Papa Francisco convoca todos os padres do Brasil para Mutirão das Autorizações. Ideia é destrancar investigações paradas há vinte anos.


segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Elogio ao fracasso

Numa sociedade em que o sucesso é almejado e festejado acima de tudo, onde estrelas, milionários e campeões são os ídolos de todos, o fracasso é visto como algo embaraçoso e constrangedor, que a gente evita a todo custo e, quando não tem jeito, esconde dos outros. Talvez não devesse ser assim.

Semana passada, li um ensaio sobre o fracasso no "New York Times" de autoria de Costica Bradatan, que ensina religião comparada em uma universidade nos EUA. Inspirado por Bradatan, resolvi apresentar minha própria homenagem ao fracasso.

Fracassamos quando tentamos fazer algo. Só isso já mostra o valor do fracasso, representando nosso esforço. Não fracassar é bem pior, pois representa a inércia ou, pior, o medo de tentar. Na ciência ou nas artes, não fracassar significa não criar. Todo poeta, todo pintor, todo cientista coleciona um número bem maior de fracassos do que de sucessos. São frases que não funcionam, traços que não convencem, hipóteses que falham. O físico Richard Feynman famosamente disse que cientistas passam a maior parte de seu tempo enchendo a lata de lixo com ideias erradas. Pois é. Mas sem os erros não vamos em frente. O sucesso é filho do fracasso.

Tem gente que acha que gênio é aquele cara que nunca fracassa, para quem tudo dá certo, meio que magicamente. Nada disso. Todo gênio passa pelas dores do processo criativo, pelos inevitáveis fracassos e becos sem saída, até chegar a uma solução que funcione. Talvez seja por isso que o autor Irving Stone tenha chamado seu romance sobre a vida de Michelangelo de "A Agonia e o Êxtase".

Ambos são partes do processo criativo, a agonia vinda do fracasso, o êxtase do senso de alcançar um objetivo, de ter criado algo que ninguém criou, algo de novo.

O fracasso garante nossa humildade ao confrontarmos os desafios da vida. Se tivéssemos sempre sucesso, como entender os que fracassam? Nisso, o fracasso é essencial para a empatia, tão importante na convivência social.

Gosto sempre de dizer que os melhores professores são os que tiveram que trabalhar mais quando alunos. Esse esforço extra dimensiona a dificuldade que as pessoas podem ter quando tentam aprender algo de novo, fazendo do professor uma pessoa mais empática e, assim, mais eficiente. Sem o fracasso, teríamos apenas os vencedores, impacientes em ensinar os menos habilidosos o que para eles foi tão fácil de entender ou atingir.

Claro, sendo os humanos do jeito que são, a vaidade pessoal muitas vezes obscurece a memória dos fracassos passados; isso é típico daqueles mais arrogantes, que escondem seus fracassos e dificuldades por trás de uma máscara de sucesso. Se o fracasso fosse mais aceito socialmente, existiriam menos pessoas arrogantes no mundo.

Não poderia terminar sem mencionar o fracasso final a que todos nos submetemos, a falha do nosso corpo ao encontrarmos a morte.

Desse fracasso ninguém escapa, mesmo que existam muitos que acreditem numa espécie de permanência incorpórea após a morte. De minha parte, sabendo desse fracasso inevitável, me apego ao seu irmão mais palatável, o que vem das várias tentativas de viver a vida o mais intensamente possível. O fracasso tem gosto de vida.

Texto do sempre fantástico Marcelo Gleiser, na Folha de 22/12/2013.

domingo, 15 de dezembro de 2013

Enquanto isso, na cartolagem


Depois da última partida do ano pelo campeonato principal da primeira divisão, os cartolas se reúnem no luxuoso apartamento do mais antigo, de apelido Gringo, pelo forte sotaque do Sul. Cobertura triplex, sauna, palmeiras importadas plantadas em vasos de dois metros de altura. O anfitrião veste uma bermuda com estampa floral e uma camisa com listras vermelhas e brancas, esticada pela barriga protuberante, homenageando o time do coração. 


Uísque importado na mesa, charutos cubanos, lindas modelos circulando de biquíni na piscina com borda infinita. O Pão de Açúcar e o Cristo Redentor, um de cada lado da paisagem.

- Salve, gente boa!, exclama um dos primeiros a chegar, com um bracelete de ouro num dos braços e quatro anéis de rubi na mão direita. O brilho do sorriso é ouro dezoito quilates.

- Salve!

- Gringo, como está amigo velho! Salve. 

O convidado puxa o anfitrião para o lado e sussura: 

- Antes de a turma chegar, Gringo, precisamos tratar daquele assunto dos policiais.

- Claro, senta aí. Quer uísque com gelo ou purinho? É 18 anos, ein, não vai rejeitar!

- Manda um duplo pra mim.

- Diga!

- Seguinte, os caras estão complicando, dizendo que não é mais com eles fazer a segurança dos jogos, dizem que não tem jeito e bateram o pé. Falam da Constituição, da lei sei lá de onde, e que vão ser processados e não podem mais fazer nada.

- Fica frio, vamos falar com quem manda. 

- Já falei. Diz que a ordem foi superior. Sem chance desta vez.

- Será possível?

- Pior que é mesmo. Não vai ter escapatória. Vamos ter que fazer igual na Europa, contratar segurança privada.

- Mas capaz, homem!, o forte sotaque anunciando a razão do apelido.

- Sim, já imaginou. Nós que não temos nada, que demos a nossa vida pelo futebol, agora vamos ter que arcar com este custo. É muito, não dá nem pra se ter uma vida digna!

- Pois é, um absurdo mesmo. Qual é o preço da segurança?

- Dizem que pra jogo grande vai custar mais de quinhentos mil.

- Tá loco, é quase o seguro dos meus carros num ano inteiro! Que merda! Vou ter que vender um apartamento!

- Este aqui?

- Não, não, este aqui vale muito mais. Aquele lá da Zona Sul, onde eu deixo os meus vinhos e os quadros antigos da minha mulher.

- Sim, os caras estão sem noção, vão acabar com a gente. Sem lucro, não tem mais futebol, e nós não podemos trabalhar de graça, né!?

- Porca miséria! Vamos fazer um escarcéu, vamos botar eles na parede, vamos incomodar até não poder mais, vamos infernizar. Mas isso não vai ficar assim!

- Deixa comigo, Gringo, eu acho que eu tenho uma solução. Vou tentar agir na surdina. 

- Beleza! Ah, aí vem chegando a turma. Mais um uísque?

- Ô, claro que sim, e traz aquele cubano que você comprou na última viagem pra Nova Iorque. 


sábado, 7 de dezembro de 2013

Ostracismo, ou Marília de Dirceu pós-moderno

- Olá!
- Oi!
- Como vc se chama?
- Marília, e você?
- Dirceu.
- Oi, Dirceu, de onde teclas?
- Papuda
- Hã? Malcriado.
- Não, não, não chamei você de papuda. Eu teclo da Papuda mesmo, sabe?
- Er... não... o que é isso, é aqui na Zona Norte?
- Bem, é um... um... como eu poderia explicar... um centro de reabilitação...
- Você é usuário de drogas?
- Não.
- Álcool?
- Não...
- Você teve um chilique e foi internado?
- Não...
- Caramba, você deve ter feito algo muito grave.
...
- Você ainda está aí?
- Estou
- Na Papuda?
- Sim...
- Acabei de ver no Google, é um presídio, é verdade?
- Sim estou preso.
- E o que você fez?
- Bom, pra resumir, nada... fui perseguido injustamente.
- Ah, tá, assim como todos os demais aí, né malandro?
- Não, não, eu...
- Tchau!

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Por que Joaquim?

Joaquim se encontra com um velho amigo, Enrique, e começam a prosear sobre a vida, o trabalho, política. Conversa de aposentados. Conversa de grandes amigos. Enrique pede um chope, Joaquim aceita. Que venham também uns pasteizinhos. E o papo flui solto.

Lá pelas tantas Enrique, com ar de descrença no futuro, se queixa das dificuldades de fazer a máquina pública funcionar, da demora nas licitações, no Judiciário, em tudo o que diga respeito a órgãos públicos. O sistema é que não permite que as coisas funcionem, é a conclusão de Enrique.

Joaquim sorve o colarinho de mais um chope, limpa o bigodinho branco que contrasta com a pele escura, baixa um pouco os óculos dourados e encara o amigo com seriedade. Cê tá falando sério?

Enrique se encolhe. Conhece a força das opiniões de Joaquim, seu jeito firme e duro de falar quando tem certeza de estar com a razão. Toma mais um gole para disfarçar a garganta que secou com o olhar penetrante de Joaquim.

Enrique, começa a perorar Joaquim, você deve estar brincando, né? Você acha realmente que é o sistema, as leis, a cultura, da falta de pessoal, enfim, estas coisas etéreas que fazem do Brasil este país do jeitinho? Garanto que quando você quer comprar um carro você não admite demora do vendedor, não é mesmo? Garanto que quando você vai a uma loja e não encontra o produto que deveria estar ali você fica indignado e sai falando mal. Garanto mais, Enrique, garanto que em nenhum destes casos você diz que a culpa é do sistema, das leis, da cultura brasileira, você diz que a culpa é do vendedor, do dono da loja.

Enrique não sabe o que fazer. Um vizinho de mesa olha meio impressionado com o crescendo da voz. Enrique deixa Joaquim continuar. Sabe que o amigo vai continuar amigo por longos anos, e que os discursos duram alguns minutos e logo mudam de assunto.

Pois é, Enrique, mas quando se trata de serviços públicos, estes que eu e você prestamos durante tantos anos, porque fomos funcionários públicos, não se esqueça, juízes e promotores também são funcionários públicos, parece que o cidadão não tem direito de cobrar a mesma eficiência. Parece que a culpa é sempre do sistema.

Mas veja, Enrique, quantos exemplos temos hoje em dia de serviços públicos que funcionam com efetividade, basta as pessoas, isto mesmo, Enrique, basta as pessoas quererem, ninguém mais. Não precisa mudar leis para antecipar uma pauta de audiência de um caso importante para a sociedade; não precisa mudar o sistema para sair da sua cadeira e fazer umas fotografias e vídeos para provar um crime ambiental; não precisa contratar mais gente para inchar a máquina pública de tomadores de cafezinho se o chefe cobrar efetividade, resultado, proatividade. Enrique, não se engane meu amigo, a mudança não está nas leis, no sistema, na cultura, a mudança está nas pessoas.

Para mostrar empatia e tantar baixar o tom da voz de Joaquim, Enrique lembra daquele caso rumoroso que tramitou recentemente: Sim, Joaquim, verdade; enquanto você falava, lembrei do caso do mensalão. O presidente do STF pegou férias e foi estudar o processo sozinho, para não ser incomodado. Depois colocou em pauta o mais rápido possível. E para evitar que os colegas ministros ficassem pedindo vista do processo, o que atrasaria em anos o caso, encontrou uma solução simples: fez uma cópia do processo para cada um, dizendo que não poderia aceitar pedidos de vista porque todos já tinham o processo na mão.

Sim!, exclama Joaquim. O cara realmente fez a diferença. Mostrou que no Brasil até a Justiça pode andar quando se quer. Mostrou que, quando se tem vontade de fazer a coisa funcionar, a Justiça anda também para ricos e poderosos, mostrou como é feio um juiz ficar cheio de dedos com gente rica e falar alto com a chinelagem. Para mim o gran finale foi o presidente do STF ter expedido os mandados de prisão justamente num feriado, quando, no modelo de cultura de funcionalismo público reinante, ninguém trabalharia. 

Enrique concorda com a cabeça. Joaquim está entusiasmado. 

Enrique gostou do debate e agora quer mais, só mais um pouquinho. Provoca o amigo: mas Joaquim, por que será que o presidente do STF fez assim, será que tinha algum interesse por trás disso tudo?

Joaquim nem espera o amigo terminar de falar. Francamente, Enrique, muito me admira você levantar suspeitas contra ele. É uma pena, mas muita gente deve pensar assim. Um bom servidor público, dedicado, responsável, dinâmico, ousado é tão excepcional que na cabeça de quem se acostumou com o laxismo público brasileiro o homem deve ter um interesse obscuro por trás do que faz. Francamente, Enrique, você quando foi duro com aquele médico milionário que era nosso réu na década de oitenta tinha algum interesse? Não, claro que não. Eu sei que não. Você só queria fazer justiça, e fez. Cumpriu o seu dever. Mas cumprir o dever público, na nossa sociedade, parece ser feio, quando todos esperam um comportamento padrão de frouxidão, de "não vou me incomodar", de "não adianta de nada insistir". 

Enrique termina o terceiro pastelzinho. Joaquim comeu só um, de tanto falar. Passam-se alguns segundos de silêncio. Enrique concorda com a cabeça, não tem como negar a evidência apresentada pelo velho amigo. Põe um fim no assunto. E a morte do John Kennedy, será que foi encomendada?

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

"Nossa cidade precisa de asfalto". Será?

Ouvi há pouco tempo uma exclamação que me deixou no mínimo intrigado: "nossa cidade precisa de asfalto". Fiquei pensativo...

Não, o sujeito não estava estava falando de rodovias, de vias rápidas, mas sim dos bairros, isso mesmo, daquelas áreas em que as crianças brincam nas ruas, em que as pessoas dormem à noite, em que final de semana se faz um churrasco, se toma chimarrão na varanda, enfim, estava falando daquela área em que se mora.

O curioso é que também não estava falando de bairros com vias sem pavimentação, daquela poeira, dos pedregulhos. Estava falando de bairros que já estão pavimentados há mais de vinte anos com paralelepípedos. Estava falando, na verdade, em passar uma camada de asfalto por cima destes paralelepípedos como uma grande e importante solução para o Município.

"Nossa cidade precisa de asfalto". Continuei pensativo...

Década de oitenta. Cidade de Tubarão, Sul do Estado de Santa Catarina. Rua São Geraldo, mais conhecida como Rua da Farofa. Futebol arte. Dedão esfolado no paralelepípedo, as traves eram feitas com as havaianas, as legítimas, do tempo em que a propaganda era como Chico Anysio. Se desse fome, corríamos para pegar goiaba ali por perto. Se um carro se aproximasse, a bola permanecia com quem tinha a posse. Corridas de bicicleta, esconde-esconde, taco, a rua era nossa, era nosso pátio. Os pais dormiam uma soneca sábado à tarde e a gurizada brincando na rua. Sem medo.

"Nossa cidade precisa de asfalto". Ainda alguns meses depois e e aquilo martelando a minha cabeça. Estará certo mesmo? Será que asfalto é o que a cidade precisa? Não vou entrar na falácia tradicional de comparar asfalto com habitação, com saúde, com escola e dizer que há outras prioridades, além do asfalto. Não é isso. Minha dúvida era se, dentre o paralelepípedo de o asfalto, o melhor é sempre o asfalto. Minha dúvida era se as cidades realmente precisam tanto de asfalto.

Abro o jornal e as lembranças da infância na década de oitenta vão embora. A população de um bairro recentemente asfaltado foi à imprensa para pedir a instalação de redutores de velocidade, diante de uma morte causada no trânsito. "Nossa cidade precisa de asfalto", volta a frase, já irritante como um mosquito no quarto durante a madrugada. 

Talvez você não tenha reparado, mas o asfalto, que parece bom, nem sempre é. É bom sim quando se quer trânsito rápido, como numa avenida principal, numa rodovia, em vias coletoras de tráfego. 

Prefeito retira asfalto em Richmond 
Mas quando, como nos bairros, a intenção é somente dar um ar de "modernidade" à antiga pavimentação de pedras, o asfalto é uma tragédia. Diversos lugares no mundo já se convenceram disso e há inclusive associações que brigam (e fazem campanhas massivas) contra as tentativas de asfaltamento de paralelepípedos que funcionam bem em muitos casos há mais de um século. Em uma cidade americana, o prefeito pegou a picareta e ajudou a revitalizar o paralelepípedo.

Por quê? 

1) Porque é muito desconfortável andar de carro a mais de 50km/h em paralelepípedos. E, nesta velocidade, geralmente os acidentes não são fatais. As crianças podem continuar brincando nas ruas, as mães e pais podem ficar sossegados. Acidentes serão raros e não uma rotina na cidade.

2) Porque o asfalto gera ilhas de calor, já que tem alto  índice de Albedo, uma medida da quantidade de luz refletida pelo material, em comparação ao paralelepípedo. A neve tem o maior índice de Albedo dos pavimentos, ao passo que o asfalto tem um dos menores.  


3) Porque o paralelepípedo é de mais fácil manutenção. Se precisar consertar uma tubulação de água, de esgoto, de telefone, se precisar trocar algumas pedras, se precisar refazer a base do pavimento, basta retirar o paralelepípedo, fazer o serviço e reinstalar. Em pouco tempo, com o trânsito normal, o paralelepípedo estará assentado no lugar. Com o asfalto, a irregularidade fica para sempre presente, e daí aqueles já tradicionais "remendos".



4) Porque o paralelepípedo permite a percolação, diferentemente do asfalto. Isso significa que as águas das chuvas naturalmente se infiltram entre as pedras e vão para o solo, ao contrário do asfalto, que exige galerias pluviais, que geram a concentração de água em pontos específicos, gerando enchentes. Basta observar que a água por cima do asfalto corre muito mais rápido que por cima do paralelepípedo. Esta água vai ter que parar em algum lugar, e geralmente é nos pontos baixos da cidade. Não seria melhor se as ruas de cada bairro absorvessem a água e, pela percolação, abastecessem os lençóis freáticos?


5) Até mesmo o maior barulho gerado pelo contato do paralelepípedo com os pneus é visto como uma relativa vantagem. Claro que pode incomodar, mas é melhor que o barulho de freadas e de acelerações e tem a grande vantagem de alertar pedestres, crianças e animais da aproximação de um veículo, prevenindo acidentes. Se fosse na frente da sua casa, com os seus filhos, você preferiria asfalto ou paralelepípedo?

6) Não é preciso instalar lombadas ou radares em paralelepípedos, porque a velocidade é naturalmente baixa. Os bons motoristas não precisam se preocupar com o desgaste dos veículos, que não acaba sendo muito maior do que o do asfalto, com tantos remendos e lombadas. Os maus motoristas vão naturalmente reduzir a velocidade, mesmo sem lombadas. 

É claro que vias de trânsito rápido, tais como avenidas, devem ser pavimentadas com asfalto. Mas nas vias de trânsito lento, é uma enorme perda de tempo e dinheiro substituir paralelepípedos por asfalto.

Rua em San Miguel, México
Nova Iorque
Um formato diferenciado


Instalação recente em Nova Iorque
Mapa com ruas em paralelepípedo em Nova Iorque (em marrom)

Paver no Paraná. Uma alternativa também interessante.
Trecho da avenida Porto Alegre - Chapecó



sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Perguntas inteligentes merecem respostas aprofundadas


Pra quem acha que promotor de justiça só precisa entender de direito, aqui vai um exemplo interessante.

Dia desses um inteligente empresário da cidade me perguntou o que poderia ser feito para reduzir o trânsito nas vias urbanas do Município. Questão de cidadania, minha área de atuação. Segundo ele, o excesso de veículos e caminhões de carga, aliado à quantidade de pequenos veículos, estava transformando o trânsito de uma cidade pequena (45 mil habitantes) em problema de cidade grande. E ele estava coberto de razão.

Lembrei que a legislação municipal proíbe o trânsito de caminhões em determinadas vias e determinados horários, estabelecendo uma espécie de Zona de Trânsito Especial (ZTE). Mas só fazer cumprir essa lei não bastaria. A pergunta era inteligente e merecia uma resposta mais aprofundada.

Joguei no Google algumas palavras em português a respeito. Poucas respostas. Tentei em inglês e... bum!!! Ainda não tive tempo de ler tudo.

Uma das ideias que mais me instigou foi a de incentivar o uso de bicicletas, para que o hábito se torne naturalmente atrativo ao cidadão. Nada de proibir o uso de carros, de caminhões; nada de limitar, compelir, obrigar. O verbo aqui é incentivar. Uma ideia atrativa para empresários, que pudessem executar sem burocracia, sem esperar pelo eterno (e etéreo) "apoio político". Enfim, uma ideia que tivesse a cara dos novos empresários: dinâmica e eficiente.

Um dos sites mais interessantes que encontrei é do Instituto de Políticas de Transporte de Victória, no Canadá. Lá você encontra um artigo que enumera estratégias para encorajar o uso de transportes não-motorizados. Outro site, o 511 Rideshare, contém diversos casos de empresas que obtiveram reais vantagens com a implantação de programas de transportes alternativos. Eis algumas das ideias mais interessantes colhidas nesta pesquisa e que podem com relativa facilidade ser instituídas por empresários em praticamente todas as cidades do país:

1) Uma espécie de vale-transporte apenas para quem usa bicicleta. Imagine quantos dos empregados de cada empresa optariam pela bicicleta se ganhassem, digamos, R$ 50,00 por mês para cada 20 dias que viessem de bicicleta para o trabalho? E quantos carros deixariam de transitar nas ruas, considerando que a maioria apenas faz o trajeto casa-trabalho-casa? E como melhoraria o humor, as relações interpessoais, o trabalho de equipe?

Dia de inverno em Copenhagen

2) Estacionamentos para bicicletas e banheiros para mudar de roupa ao chegar. Na Europa muita gente anda de terno e gravata e de bicicleta. Mulheres lindas andam de vestido e salto alto. Ainda vamos chegar lá. E não, não é o clima que favorece. Aqui é muito melhor, não neva, não chove todo dia (como em alguns lugares do Canadá, por exemplo). Mas, enquanto não viramos europeus, que tal permitir que o empregado venha com a roupa mais à vontade e depois se troque na empresa ou, se quiser, tome um banho ou apenas lave o rosto? Em cidades pequenas e médias, a maioria dos deslocamentos para o trabalho é inferior a 5km e, nesta situação, com o fortalecimento natural do sistema cardiorrespiratório que a atividade vai proporcionar, será raro algum empregado chegar ao trabalho todo suado, esbaforido.


3) Eventos de caminhada e ciclismo realizados pelas empresas, direcionados aos empregados. No exterior são chamados de Bike-to-Work Day (Dia Bike-para-Trabalho). Muita gente não acredita no potencial da bicicleta porque simplesmente... não pedala. Imaginem o funcionário percebendo, num evento deste, que é muito fácil vir trabalhar de bicicleta? Alguns eventos premiam o funcionário ou a equipe de funcionários que conseguir completar a maior distância somada de bicicleta para o trabalho durante a semana ou mês. Outro incentivo é fornecer aos empregados, no Dia da Bicicleta, um café da manhã diferenciado na empresa.



4) Campanhas e competições do dia da bicicleta ou dia de ir ao trabalho a pé. Já temos no Brasil uma espécie de competição como o Dia do Desafio, iniciativa do Sesc, só que geralmente não é voltada ao transporte, mas sim à pura e simples atividade física, como esporte. Imaginem criar o Dia do Pedal, em que ganhariam prêmios os funcionários das empresas que fossem ao trabalho de bicicleta? Quantos precisam deste empurrãozinho para notar a vantagem de largar o carro em casa?

5) Serviços de entregas em bicicletas. O velho menino do jornal todos conhecem. E porquê não fazer o mesmo com a pizza, com o lanche, com as pequenas entregas em geral? Algumas empresas oferecem o serviço de bike-entrega, ou entrega ecológica (veja outros exemplos aqui).

6) Pagamento de um real para cada trajeto feito de bicicleta. Foi o que a empresa Specialized, da Califórnia fez. A empresa utilizou os dados estatísticos da diminuição do uso de carros para complementar suas ações em favor do meio ambiente. Em 2006, por exemplo, livrou do ar 68 toneladas de gás carbônico. Tudo bem que é uma fábrica de bicicletas, mas em 2007 a empresa obteve  71% dos funcionários transitando de casa ao trabalho de bicicleta.

7) Caronas de emergência. Outro caso considerado de sucesso pelo site 511 Rideshare é o da empresa Lockheed Martin, uma empresa de segurança. Além de todas estas iniciativas já listadas aqui, a empresa oferece uma carona de emergência para casa, parece ocorrer quando a bicicleta quebra ou quando o tempo muda demais. A empresa conseguiu evitar o gasto de aproximadamente 3 milhões de litros do combustível que os 2325 funcionários que aderiram ao programa gastariam em 2008. Nada mal, ein? Se a gasolina estivesse no preço brasileiro, seriam aproximadamente R$ 9 milhões de reais literalmente queimados a menos por ano!

8) Escolher um funcionário como o embaixador da bicicleta. Este funcionário pode ter seu nome divulgado em cartazes como os do "funcionário do mês", mas sua principal função será tirar dúvidas sobre o uso de bicicleta para o trabalho, ensinar a realizar pequenos consertos na bicicleta, auxiliar a encontrar rotas mais seguras, dar dicas de como comprar uma bicicleta, etc. É aquele sujeito que vai receber o seguinte tipo de pergunta: "Cara, tô afim de começar a vir de bike para o trabalho; como é que você faz?"

9) Incentivos tributários. Alguns países concedem incentivos tributários para empresas cujos funcionários vão de bicicleta ao trabalho. Nos EUA, desde 2009, em alguns estados, a empresa recebe um crédito de imposto de US$ 20,00 para cada funcionário que, ao invés de dirigir ao trabalho, vai de bicicleta. A ideia não era nova em 2009. Foi inspirada no fato de muitas empresas americanas já concederem este tipo de incentivo aos funcionários. Algumas empresas chegam a dar incentivos de US$ 500 para aquisição de bicicleta pelos funcionários que se comprometerem a vir ao trabalho ao menos duas (só duas!) vezes por mês  de bicicleta.

As vantagens destas iniciativas também são listadas nos sites consultados:

- redução geral de congestionamento nas cidades e bairros
- diminuição da exigência de estacionamentos nas empresas
- menos poluição
- maior eficiência no uso dos imóveis
- melhoria da qualidade de vida na comunidade
- melhora do humor no trabalho
- melhora da saúde dos funcionários
- diminuição de afastamentos por saúde

Bom, acho que a resposta foi satisfatória. O que você achou?



sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Bons alunos e bons professores, ou uma questão de sorte

Charles e Fernando são advogados. Ambos estudaram juntos em colégio de padres. Ambos tiveram as mesmas oportunidades, à exceção de uma: Charles passou num vestibular para uma boa faculdade de direito; Fernando teve um pouco mais de preguiça nos estudos, preferiu continuar morando com os pais e acabou se matriculando numa faculdade mais perto de casa, em que o vestibular era apenas uma formalidade. A partir daí, a vida mudou.

Na faculdade, Charles comprava passe de ônibus e contava uma a uma das moedinhas de plástico, porque sabia que uma única a menos faria muita falta no final do mês. Trabalhava de tarde no fórum, voluntariamente. Frequentava as aulas à noite; pela manhã estudava. Na faculdade, só gente fera, dava vergonha tirar nota baixa.

Fernando ia à faculdade à noite com o carro que ganhou do pai. Mandou rebaixar e botar umas rodas grandes, dava vergonha andar com aquelas de aro catorze. Saía um pouco mais cedo das aulas, para tomar cerveja e jogar truco no barzinho. Encabeçou um movimento para afastar professor que cobrava nas provas o que não havia ensinado mastigadinho em sala de aula, "um absurdo, já que nós pagamos é para que ele ensine". Não estudava e passava. Como todos os demais.

Conversei com ambos tempos atrás. Perguntei sobre as lembranças da faculdade. Charles lembro do professor de direito ambiental. "Era jogo duro". Simpático apenas com os bons alunos, cara fechada na aula e na hora de avaliar. Deu aulas sobre princípios constitucionais, sobre leis federais, estaduais e municipais; jurisprudência de todos os tribunais. Ensinou os alunos a pesquisarem por conta própria. Cobrou nas provas princípios, mas também atos e portarias detalhadas, mesmo que não tivesse mencionado em sala de aula: era obrigação, segundo ele, complementar os estudos em casa. "Quando só faltava exigir que nós soubéssemos os códigos das atividades de uma portaria do Conselho de Meio Ambiente, ele exigiu; minha nota foi super baixa, mas aprendi a lição", lembra Charles.

Fernando abre um largo sorriso quando lembra da faculdade. "O melhor professor que tive era o  de direito tributário, gente fina". Dava aulas curtas e não cobrava chamada. Não tinha prática profissional nenhuma, mas "encantava a galera". Provas, só objetivas, de múltipla escolha. Discursivas davam muito trabalho. "Um dia fez uma prova em grupo e deu dez pra todo mundo, gente boa", lembra Fernando, com admiração.

Charles hoje ligou para Fernando. Foi promovido a sócio no maior escritório de advocacia da cidade; está radiante. Ganhou um caso importante porque descobriu um erro numa portaria do Conselho de Contribuintes. Fuçou em toda a legislação, inclusive comparando com normas internacionais, e conseguiu entender os detalhes intrincados do processo. Aplicou os princípios sim, mas não esqueceu que o direito é concreto. E foi elegante e educado nas petições, defendeu bem o cliente, fez justiça. Chegou a receber elogios na sentença.

Fernando, do outro lado da linha, atende a ligação do velho amigo. Depois de o parabenizar, exclama:

- Fico feliz por você, que teve sorte na vida.